Caminhos Cruzados: A importância de um cenário integrado do movimento pela mobilidade a pé

Como Anda
8 min readMar 21, 2017

Caminhos Cruzados é uma experiência de debate virtual com o objetivo de discutir um mesmo tema a partir de visões e abordagens distintas. Além de responderem cada uma das três perguntas elaboradas pelo Como Anda, cada convidado deve comentar a resposta do outro. Trata-se de um esforço para revelar as divergências, singularidades e, também, as semelhanças entre as perspectivas de cada um sobre a mobilidade a pé no Brasil.

Importância de um cenário integrado do movimento pela mobilidade a pé

Com Meli Malatesta, especialista brasileira do Pé de Igualdade e da Comissão de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP, e Mário Alves, secretário geral do International Federation of Pedestrians.

1. Como Anda a mobilidade a pé no seu país?

Meli Malatesta: A mobilidade a pé até recentemente não era entendida pelo meio técnico, político e mesmo pela população, como sistema de transporte e em rede que, assim como os demais, opera como modo único ou alimentador dos outros modos de deslocamento. Isso se reflete nas políticas públicas brasileiras que acabaram por gerar uma infraestrutura precária presente em todas as cidades brasileiras que minimamente atendem às necessidades de quem anda. Apesar da legislação brasileira mais recente, Código de Trânsito Brasileiro de 1997 e a Lei da Mobilidade Urbana de 2012, instituírem prioridade ao pedestre, a visão viciada do poder público e da sociedade com foco na mobilidade motorizada dificultam a prática desta prioridade.

MA: Minha experiência no Brasil é muito limitada mas devo dizer que tenho uma enorme admiração pelas ONGs que tenho conhecido — muito dinâmicas, com uma aparência de enorme profissionalismo e principalmente com trabalho prático realizado que faz a diferença. Imagino que os crescimentos urbanos rápidos no século XX, tal como em todos os países, foram muito influenciado pelo modernismo e o paradigma automóvel. Reverter estes padrões urbanos, muitos deles desalmados, não será tarefa fácil e exigirá muitos recursos quando o mundo está em plena crise financeira e o investimento público em baixa. Talvez a resposta tenha que ser investimentos de baixo-custo/alto-benefício com o agora chamado urbanismo tático. Quando lutamos pela alteração do Código da Estrada em Portugal e conseguimos a maior parte das alterações, reparamos que o Código Brasileiro até era mais moderno em muitos aspectos. Mas lá está — conseguimos mudar a lei mas não a prática cultural e política.

Mário Alves: Em Portugal, onde vivo agora depois de ter vivido em vários países da Europa, a situação não é muito diferente do Brasil — a mobilidade pedonal (pedestre) foi, ao longo das últimas décadas, o modo de deslocamento mais desprezado. No entanto, há algumas diferenças a assinalar. Em primeiro lugar a escala é bem menor e grande parte dos nossos centros urbanos são mais antigos e com uma escala mais miúda, um pouco mais fáceis de caminhar e restringir o uso do automóvel. Em segundo lugar, tem havido, da parte das instituições europeias e nacionais, algum esforço para influenciar a forma como se planja a mobilidade nos meios urbanos. Depois de décadas com excessivos investimentos nas infraestruturas para o carro, finalmente algumas cidades estão investindo um pouco mais no espaço público e a dando mais atenção aos pedestres e à acessibilidade (deficientes visuais, cadeirantes etc) . Um bom exemplo, e quase único, é o Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa que se encontra em fase de implementação.

MM: As cidades europeias, por serem mais antigas, tiveram seus espaços públicos de mobilidade preservados do furioso processo de motorização que varreu o planeta após a ascensão da indústria automobilística. A solução de pedestrianização dos centros urbanos como processo de requalificação no pós guerra foi um fenômeno iniciado por lá, assim como a valorização do caminhar para além do aspecto utilitário, o flanar, que resultou em famosos boulevares e ramblas.

2. Quais são as dificuldades para atuar no tema e como superá-las?

Meli Malatesta: Infelizmente quem adota a caminhada em seu deslocamento cotidiano não se enxerga como usuário prioritário da infraestrutura de mobilidade, não exige seus direitos e se submete aos injustos e precários esquemas de uso dos espaços públicos nas cidades brasileiras. Por outro lado, os tomadores de decisão, ao definirem estes esquemas, se baseiam numa suposta segurança e proteção ao pedestre. Ela se constitui basicamente no estabelecimento de soluções para uso do tempo e do espaço urbanos de forma que o pedestre não atrapalhe o tráfego motorizado. A missão quase impossível é mostrar aos atores este cenário e fazê-los desempenharem seus papéis de forma correta.

MA: Os pedestres, mesmo não se identificando como tal, sofrem uma espécie de “Síndrome de Estocolmo” submetidos desde que nasceram a uma prolongada intimidação. Temos geralmente um elevado nível de tolerância e até “amor” pelo opressor — muitos pedestres desejam um dia serem motoristas. É importante dizer claramente e sem pudor que o pedestre deverá ter mais direitos e menos deveres que o motorista. As batalhas por direitos foram sempre batalhas contra os poderes instituídos. Mas o mundo está em constante mudança e aquilo que consideramos normal hoje poderá ser a causa de riso ou ultraje para as gerações futuras — pensem nesta possibilidade intrigante: com veículos 100% autônomos, os pedestres terão prioridade absoluta!

Mário Alves: O pedestre, infelizmente e contrariamente ao ciclista ou motorista, não têm identidade sociológica e política. Precisamente por sermos 100%, o caminhar é um ato tão natural que acaba por ser pouco meditado, medido, estudado. Falta uma máquina carismática como a bicicleta e o pedestre não sente que sofre de uma “doença rara” como o ciclista urbano, que é bem mais ativo nas suas reivindicações políticas. Esta fraqueza política acaba refletida no espaço público — foi, e é, politicamente fácil retirar espaço e prioridade ao pedestre para satisfazer o motorista e, mais recentemente, para encontrar espaço para a bicicleta. Um dos primeiros passos para alterar a situação poderá ter que passar pela consciencialização política dos pedestres — que têm que exigir mais direitos e menos deveres que qualquer outro modo de transporte. Mas também exigir que cada modo de transporte pague o seu custo econômico para a sociedade devido às suas externalidades (ruído, emissões, sinistros, espaço…).

MM: Concordo quanto à falta de um “instrumento” que dificulta a glamourização, a valorização da caminhada como deslocamento cotidiano. Sempre que posso chamo a atenção para a falta de visão dos produtores do instrumentos do caminhar, calçados em geral, que não investem em estratégias agressivas de marketing como fazem as montadoras de automóveis. Quem sabe a conscientização dos movimentos sociais, que militam pela melhoria da mobilidade a pé no mundo todo, não acorde o setor produtivo para a óbvia constatação do filão de mercado que estão perdendo. Ao mesmo tempo, algumas cidades já estão passando por um processo de valorização imobiliária e gentrificação relacionado ao grau de caminhabilidade oferecido pelo seu ambiente urbano de caminhada, como bem registra Jeff Speck no seu livro Cidade Caminhável.

3. Você acredita que é importante que as organizações em prol da mobilidade a pé atuem de maneira integrada? Por quê?

Meli Malatesta: As organizações são formadas basicamente por cidadãos indignados que se recusam a aceitar a situação de deslocamento de segunda categoria imposta à mobilidade a pé e, empoderados pelo conhecimento de seus direitos, militam pela dignidade e prioridade garantidas pelas instituições políticas e sociais. A atuação integrada das organizações formada por estes cidadãos é essencial como força política conscientizadora da sociedade na reivindicação do importante papel que a caminhada representa para a qualidade de vida e para o futuro das cidades.

MA: Naturalmente, e tal como acontece com muitos movimentos sociais, existe um certo elitismo no ativismo pedonal (tal como, notoriamente, no ativismo ciclista). Talvez seja perfeitamente natural e tenha sido sempre assim (Margaret Mead: “Nunca duvide que um pequeno grupo de ponderados e dedicados cidadãos podem mudar o mundo, de fato foi sempre assim que aconteceu”), mas é possível que haja um momento em que este pequeno grupo tem que expandir para criar a necessária massa crítica consciente e atuante que provoca a mudança. É nesta fase que criar e nutrir redes se torna fundamental. Redes de contato são o combustível da ação política: precisamos de conversar, copiar, ajudar, inspirar, encorajar…

Mário Alves: É extremamente importante criar redes integradas de comunicação e ação. Como disse E.M. Foster: Just connect! E a união também faz a força. Estas sinergias que se pode obter com redes flexíveis, mas muito focadas em resultados, não só utilizando as redes sociais mas também sem esquecer os imprescindíveis encontros periódicos, serão fundamentais para criar e expandir a tal identidade política, sociológica e reivindicativa do pedestre. A necessidade de nos agigantar é fundamental porque a militância pedestre é ainda bastante incipiente, mas o potencial é enorme e explosivo — não há reivindicações políticas que possam dizer que representam 100% da população. É também muito importante criar sinergias com outras ideias e militâncias que têm atuações e exigem direitos mais específicos e, talvez por isso, com mais capacidade identitária: qualidade e equidade do espaço público, feminismo, exclusão social, arte de intervenção pública, mobilidade em bicicleta e em transporte público.

MM: O Pedativismo surgiu na sociedade brasileira inspirado na descomunal força e impacto do movimento cicloativista. A transformação urbana e cultural resultante da organização, articulação e determinação destes movimentos mudou a abordagem política e social da mobilidade cicloviária e está canalizando consideráveis investimentos em infraestrutura apoiados por programas incentivadores. Grandes cidades como São Paulo, com quase 12 milhões de habitantes e com 1 % do total de deslocamentos diários realizados por bicicleta (Pesquisa de Origem e Destino do Metrô — 2007), investiram recursos para construir, somente em 4 anos, mais de 400 km de rede cicloviária. Assim, direcionar esforços políticos e econômicos para estruturar uma rede da mobilidade a pé que atenda a mais de 30% das viagens diárias feitas exclusivamente a pé e 30% de viagens feitas por transporte coletivo e complementadas por viagens a pé parece ser a consequência natural dos movimentos sociais que militam pela mobilidade ativa.

Meli Malatesta é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com mestrado e doutorado em Mobilidade Não Motorizada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Atuou profissionalmente na CET por 35 anos em Mobilidade Ativa: a Pé e Cicloviária. Atualmente trabalha como consultora e professora em políticas públicas, planejamento e projeto para mobilidade a pé e cicloviária. Também é a idealizadora e presidente da Comissão Técnica de Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP e blogueira do Pé de Igualdade, Portal Mobilize.

Mário Alves é Engenheiro Civil com o grau de mestre pelo Imperial College London. Trabalhou no Centro de Sistemas Urbanos e Regionais da Universidade Técnica de Lisboa e no Centre for Transport Studies of the University of London como Investigador Associado. Fez parte do Comitê Internacional de Programação da conferência Walk21 em Toronto e foi Coordenador Nacional do Projecto COST: Pedestrian Quality Needs. Coeditor o livro “The Walker and the City”. Foi consultor do Plano Nacional de Promoção da Bicicleta e outros Modos Suaves em Portugal. É Secretário-Geral da Federação Internacional de Pedestres, escreveu artigos e fez numerosas comunicações e seminários em muitos países do mundo sobre diversas temáticas relacionadas ao transporte e mobilidade sustentável.

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